“Cultura Metro”: o pacto social que reconstruiu Medellín

Como o Metrô de Medellín transformou mobilidade em cidadania, reorganizou relações e ajudou a redefinir o futuro da cidade

Renata Veríssimo , Especial para a Technibus

A “Cultura Metro” é a filosofia sociocultural que fundamenta o funcionamento e a identidade do Metrô de Medellín, na Colômbia, que em 30 de novembro deste ano completará 30 anos de implantação e 38 anos de planejamento. Passageiros e colaborares da empresa exercitam diariamente dentro das estações comportamentos que remetem à nível elevado de maturidade civilizatória. Ela nasceu paralelamente ao desenvolvimento do sistema de transporte, baseada no reconhecimento de que infraestrutura e tecnologia não são suficientes para transformar uma cidade — é preciso transformar relações, comportamentos e o sentido de pertencimento coletivo.

A cidade (ferida)

Para entender a “Cultura Metro”, é necessário voltar a Medellín antes da operação do sistema — uma cidade ferida pela violência, pela fragmentação territorial e pela ausência de políticas urbanas capazes de reorganizar a vida coletiva. No início dos anos 1990, Medellín registrou uma das maiores taxas de homicídio do planeta, superando 8 mil mortes em um único ano, com taxa de 381 homicídios por 100 mil habitantes. O impacto social era devastador: medo generalizado, retração do espaço público, isolamento das comunas de ladeira e perda de confiança nas instituições.

Foi nesse contexto que a construção do metrô avançou. Enquanto a cidade enfrentava seu período mais crítico, os trilhos eram instalados, os pilares erguidos e os primeiros trens testados. A obra, ainda antes de operar, começou a representar algo simbólico: a possibilidade de reorganizar Medellín a partir de um eixo de mobilidade, convivência e serviço público. A “Cultura Metro” nasceria dessa conjuntura — não como um adereço institucional, mas como resposta a um momento em que a cidade precisava reconstruir seu pacto social.

Durante o Fórum UITP América Latina, realizado na cidade entre os dias 11 e 14 de novembro, o prefeito Federico Gutiérrez retomou esse marco histórico: “Em 1991, Medellín foi considerada a cidade mais violenta do mundo. Vivíamos um inferno real. E foi justamente nesse cenário que o metrô começou a ser construído, trazendo a esperança de que esta seria a primeira cidade da Colômbia a ter futuro.”

Trinta anos depois, Medellín registra as menores taxas de homicídio em quatro décadas (11 por 100 mil habitantes). Para Gutiérrez, a “Cultura Metro” desempenhou papel decisivo: “Hoje, o sistema é querido e respeitado porque começou pela Cultura Metro — porque ensinou as pessoas a quererem e a cuidar do que é de todos.” Para ele, o “jeito de ser” do Metrô de Medellin contribuiu para a autoestima coletiva. Segundo ele, Medellín se transformou física e socialmente. O metrô se tornou um símbolo de esperança e de amor pela cidade.

Um pacto antes dos trilhos

O sistema gerenciado pelo Metrô de Medellin, que inclui múltiplos modais, se tornou mais do que um meio de transporte: é um cenário de encontros cotidianos que geram confiança, reciprocidade e vínculos sociais. O que faz da Cultura Metro algo tão poderoso é que ela não nasceu depois dos trilhos: ela nasceu antes. Antes que o sistema operasse, já tínhamos decidido que tipo de relação queríamos construir com a cidade. Isso explica por que o metrô é querido e respeitado: porque ele foi pensado para as pessoas e com as pessoas,” relembra Tomas Elejalde, diretor-geral do Metrô de Medellín, que atua há mais de 30 anos na empresa. Logo nos primeiros anos de funcionamento do metrô os passageiros naturalmente evidenciaram a diferença comportamental que se via dentro do sistema e na cidade.  Segundo Tomás, a expressão “Cultura Metro” foi cunhada junto com os próprios clientes (passageiros).

Esse pacto se tornou a espinha dorsal do sistema. Respeito, convivência, cuidado com o patrimônio, organização espontânea, gentileza no embarque, prioridade para gestantes e idosos, silêncio nos vagões — comportamentos que Medellín decidiu cultivar deliberadamente, ainda que em um período de profundo desgaste social.

A Cultura Metro se articula como um modo de relação estruturado em três dimensões: relação consigo mesmo, relação com o outro e relação com o entorno. O eixo individual trabalha o autocuidado, o amor-próprio e a autenticidade. O eixo relacional promove respeito, escuta, empatia, solidariedade e reconhecimento da diversidade. O eixo territorial destaca a corresponsabilidade, o cuidado com o espaço público, a arte urbana e a construção de ambientes limpos, organizados e seguros. O terceiro eixo é tão forte, segundo Tomás, que os próprios passageiros chamam a atenção de outros passageiros quando ao não respeito ao patrimônio público dentro do sistema.

O Metrô promove, pela sua presença física e pelos valores que cultiva, um processo contínuo de ressignificação da cidade e de construção de cultura cidadã. Para Andrés Ortiz, gerente Social e de Serviço ao Cliente, a Cultura Metro não é uma campanha ou um simples manual. “A Cultura Metro é, antes de tudo, um modo de relação. É a forma como decidimos nos encontrar todos os dias: comigo mesmo, com o outro e com a cidade. Quando isso acontece, o sistema deixa de ser apenas transporte e se converte em vida cotidiana, em pertencimento, em cidadania.”

Metrô de Medellin inclui múltiplos modais

Educar para transformar

A gestão social é um pilar central: programas como a Escola de Líderes (capacitação entre 200–250 jovens por ano), “Semilleros infantis” – espaços educativos onde as novas gerações aprendem sobre cidadania, convivência, respeito ao patrimônio público e o papel do transporte coletivo na vida urbana -; visitas guiadas com foco educativo, organizadas para diferentes públicos, como estudantes, professores, líderes comunitários e outros grupos interessados., exposições itinerantes e bibliotecas formam cidadãos e fortalecem o vínculo entre comunidade e sistema.

A gestão predial, nas obras, incorpora acompanhamento jurídico, emocional e social, reconhecendo a importância do morador como parte do processo. O entorno cuidado resulta de intervenções artísticas, limpeza, ordem e presença institucional, criando ambientes que favorecem comportamentos positivos. A arte urbana (284 intervenções) e a abordagem educativa com grafiteiros reforçam o respeito pelo patrimônio.

Para Andrés Ortiz, as formações dos líderes é um dos programas mais relevantes para o processo de manutenção da “Cultura Metro”. “Nós formamos estes jovens em democracia, em habilidades para a vida, em amor-próprio, em autoestima. Porque quando alguém fortalece a relação consigo mesmo, também transforma sua relação com os outros e com o entorno,” reforça Andrés, responsável por uma equipe de 12 pessoas que inclui antropólogos, psicólogos.

A voz que cuida

No Metrô de Medellín, comunicar não é um gesto operacional — é uma forma de cuidado público. A comunicação é um fundamento institucional da empresa, tão relevante quanto segurança, operação ou manutenção. Ela sustenta a convivência, organiza emoções, suaviza tensões urbanas e recorda diariamente aos passageiros que o espaço compartilhado é, antes de tudo, um pacto entre pessoas.

Ao caminhar por uma estação, o passageiro percebe que a comunicação está presente de maneiras pequenas e contínuas, quase imperceptíveis: no tom das mensagens sonoras, na estética dos avisos, nas frases que convidam à calma, nos lembretes silenciosos sobre autocuidado e respeito. Nada ali é casual. Tudo foi pensado para transformar deslocamentos em experiências de civilidade. Um bom exemplo é o adesivo aplicado discretamente no chão da plataforma, que traz mensagens sutis de cuidado e apoio emocional aos passageiros.

A figura de John Bayron Romero Palacio, colaborador há 24 anos e responsável por ser a voz oficial do sistema, sintetiza essa arquitetura sensível. Sua voz — um timbre reconhecível por milhões de habitantes — acompanha o passageiro pelas plataformas, pelos trens e pelos ônibus. Ela dá instruções, orienta embarques, informa mudanças operacionais. Mas também faz algo que poucos sistemas de transporte no mundo se permitem fazer: acolhe.

Nos últimos anos, Medellín incorporou à sua rotina sonora mensagens breves de relaxamento — um convite para respirar fundo em meio à pressa do dia. Essa decisão nasceu de uma observação simples: viajar não é só sobre deslocamentos; é carregar preocupações, ansiedades, ritmos internos. A comunicação do Metro atua como um contrapeso emocional, oferecendo uma pausa possível na cidade onde tudo parecia urgente demais.

Apoio emocional e psicológico

Mas o cuidado vai além. Nas plataformas, adesivos discretos transmitem mensagens de apoio emocional para quem atravessa momentos difíceis. No chão, textos curtos incentivam a pedir ajuda. Em pontos estratégicos da rede, surgem os Escuchaderos, espaços de escuta ativa criados para acolher jovens, adultos e idosos em situações de sofrimento emocional. Ali, profissionais capacitados recebem quem precisa conversar — sem julgamento, sem burocracia, sem barreiras. O metrô, que um dia foi símbolo de fuga da violência, hoje se converte também em refúgio emocional. Essa abordagem não é estética: é política pública. A comunicação no Metrô de Medellín reconhece que a vida urbana é atravessada por tensões e que segurança não é apenas física — é emocional e social.

E nisso a Cultura Metro encontra sua expressão mais discreta e sofisticada: na clareza das placas, na suavidade das mensagens, na constância das orientações, na forma respeitosa como o sistema chama seus passageiros à atenção ou ao cuidado.

No fundo, a comunicação do Metrô de Medellín não serve apenas para transmitir informações. Ela serve para lembrar às pessoas que ninguém atravessa a cidade sozinho. Que o cotidiano pode ser um pouco mais leve. Que o espaço coletivo pode ser um território de apoio. Que o ato de viajar pode ser, também, um gesto de humanidade. Essa comunicação tornou-se parte do tecido emocional da cidade.

Escuchaderos são espaços de escuta ativa

Um “Ser” sustentável

A sustentabilidade do sistema, registrada na Memória de Sustentabilidade 2024, reforça o impacto da “Cultura Metro” na vida urbana. Esta cultura não está somente na dimensão social, mas também na econômica, na ambiental e na de governança. Sob a ótica do ambiental, o Metrô de Medellín operou durante todo o ano com 100% de energia limpa, evitando 65 mil toneladas de CO₂ — um acumulado de 650 mil toneladas desde o início do sistema. A integração física e tarifária gerou 47 milhões de horas economizadas pelos passageiros, com impacto econômico de mais de 6,9 bilhões de COP (R$ 9,6 bilhões) para o Vale do Aburrá.

As externalidades incluem ainda a prevenção de 36 mil incidentes viários, melhora da saúde respiratória e redução significativa da poluição atmosférica. No eixo ambiental, a empresa mantém mais de 10.750 árvores e realiza intervenções ecológicas ao longo de 6,8 km de áreas naturais, recolhendo 37,5 toneladas de resíduos por ano. E, no eixo econômico, movimentou mais de 597 milhões de COP (R$ 842 milhões) em fornecedores locais e realizou mais de 13 mil capacitações com colaboradores — fortalecendo a cadeia produtiva do transporte.

A sustentabilidade financeira também entra em nova fase. O Metro é o primeiro sistema de transporte da América Latina a emitir Bonus Sustentáveis — títulos verdes e sociais que vinculam financiamento a impacto ambiental e social. Trata-se de uma estratégia que reforça o compromisso público de manter o metrô acessível, confiável e sustentável. Saiba mais aqui: Investors

Laboratório Comportamental – Futuro em andamento

Mas talvez o maior desafio futuro seja manter viva uma cultura que já atravessa quatro décadas. Por isso, a empresa está estruturando um Laboratório de Comportamento do Usuário, voltado a compreender transformações sociais emergentes: novas gerações hiperconectadas, ampliação da população migrante, impactos emocionais da vida urbana e adaptação de comportamentos à expansão da rede. Está em curso o projeto Línea E – Metro de la 80 (também chamado “Metro de la 80”): serão ~13,25 km de extensão, 17 estações, conectando a estação Caribe até Aguacatala, a Cultura Metro precisará viajar junto com a infraestrutura — acolhendo comunidades diversas, prevenindo conflitos e fortalecendo confiança.

Ao longo das décadas, o Metrô de Medellín consolidou-se como um projeto de cidade — não apenas de transporte. A Cultura Metro transcendeu as estações e se tornou um marco identitário de Medellín, fortalecendo a convivência cidadã, a confiança institucional e a qualidade de vida dos habitantes do Vale do Aburrá. É uma filosofia que transformou medo em possibilidade, violência em convivência, fragmentação em pertencimento. E que segue ensinando, todos os dias, que mobilidade pública pode ser, também, um exercício permanente de cuidado mútuo, cidadania e futuro.

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