A difícil adoção de ônibus a tração elétrica

(*) Francisco Christovam é diretor-executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), vice-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (Fetpesp) e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional do Transporte (CNT) e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Engenharia

Redação

*Por Francisco Christovam

O Brasil é signatário dos principais protocolos e acordos internacionais – Protocolo de Kioto, Acordo de Paris, Pacto de Glasgow, entre outros – e tem tido destacada participação nas conferências mundiais que tratam das questões climáticas. Em cumprimento aos tratados assinados, desde a década de 1990, várias iniciativas têm sido adotadas para reduzir as emissões de poluentes e mitigar os efeitos da poluição ambiental, nos mais diferentes campos da atividade econômica.

De acordo com recente documento publicado pela Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, intitulado Rotas Tecnológicas de Descarbonização do Transporte Coletivo no Brasil, “comparados ao total das emissões brutas de GEE do País (2,4 GtCO2eq), os ônibus urbanos a diesel – incluídos os rodoviários e fretamento – contribuem com (22 MtCO2eq), pouco menos de 1% das emissões nacionais. Trata-se de uma pequena fração das emissões totais nacionais de GEE…”

No entanto, na área da poluição veicular, em especial, o processo de mudança da matriz energética dos ônibus urbanos e de caráter urbano tem chamado a atenção, principalmente, devido à concentração das emissões nas áreas citadinas.

Em que pese algumas iniciativas pontuais que foram tomadas em várias cidades brasileiras, desde a década de 1990, foi com a promulgação da Lei Municipal Nº 16.802, de 18 de janeiro de 2018, que se iniciou uma série de medidas no sentido de reduzir as emissões provocadas pela circulação dos ônibus e dos caminhões na cidade de São Paulo. Além de outras exigências, a referida lei estabeleceu que, num prazo de dez anos, deverá haver uma redução mínima de 50% e, num prazo máximo de vinte anos, uma redução de 100% das emissões totais de dióxido de carbono (CO2) de origem fóssil, na cidade de São Paulo.

A nova lei estabelece, ainda, que deverá haver uma redução mínima de 90% das emissões de material particulado (MP) e de 80% das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx), até o ano de 2028. Deverá ocorrer, também, uma redução mínima de 95%, tanto nas emissões de material particulado (MP) como de óxidos de nitrogênio (NOx), até o ano de 2038.

Assim, por força de uma legislação aplicável na cidade de São Paulo, a mudança do perfil tecnológico da frota nacional começou a ganhar corpo e os diferentes rumos da descarbonização começaram a ser definidos.

Atualmente, as principais rotas existentes, que tem por objetivo a não utilização de combustíveis de origem fóssil, consideram os ônibus equipados com motores elétricos, utilizando energia proveniente de baterias ou de células de hidrogênio, bem como ônibus equipados com motores a combustão, que usam o gás biometano ou algum tipo de biocombustível (HVO ou diesel verde) como fonte de energia. Cada uma dessas rotas encontra-se num diferente estágio de desenvolvimento tecnológico e nem todas estão prontas para uso universal e plena comercialização. Além disso, todas essas tecnologias alternativas demandam altos investimentos – em infraestrutura e material rodante – e apresentam custos operacionais mais altos, quando comparadas ao ônibus diesel convencional, de porte semelhante.

Como o ônibus a tração elétrica, com energia proveniente de baterias, no momento, é a solução mais viável, algumas cidades estão iniciando seus processos de substituição da frota diesel por veículos menos poluentes. Vários municípios estão testando ônibus a tração elétrica, de diferentes fabricantes; mas, os únicos que já estão operando, com uma frota de mais de 5 veículos são: São Paulo, Salvador, São José dos Campos, Cascavel, Curitiba, Diadema e Brasília. Consequentemente, todas elas estão lidando com os problemas próprios de uma mudança tecnológica implantada sem muito planejamento e sem a elaboração de um projeto, que considere as questões técnicas, econômico-financeiras, operacionais e, principalmente, de infraestrutura viária e de infraestrutura elétrica, para a carga e recarga das baterias dos veículos.

Com relação à infraestrutura viária, não é razoável utilizar um veículo a tração elétrica, que custa, no mínimo, três vezes mais do que um ônibus diesel, de igual porte, para deixá-lo parado num congestionamento ou aguardando a abertura dos semáforos, nos cruzamentos. Esse tipo de veículo é ideal para a operação em corredores exclusivos ou sistemas BRT’s, para a otimização do seu Custo Total de Propriedade – TCO e máximo aproveitamento da sua capacidade de transporte.

Por outro lado, para a operação de uma frota de ônibus elétricos é imprescindível um perfeito entendimento e entrosamento entre o poder concedente, as empresas operadoras, a concessionária de energia e, principalmente, com os órgãos de financiamento, para a compra de veículos e de equipamentos, bem como para a adaptação da infraestrutura viária e de abastecimento de energia elétrica.

A cidade de São Paulo é um bom exemplo de como a falta de planejamento detalhado e integrado pode atrapalhar a adoção de um sistema de ônibus à tração elétrica. A municipalidade proibiu, em outubro de 2022, a compra de novos ônibus a diesel, para a renovação da frota, conforme previsto no contrato de concessão, e obrigou as empresas concessionárias a adquirirem somente ônibus elétricos, num total de 2.600 veículos, até o final deste ano. Infelizmente, os entendimentos necessários para que a concessionária responsável pela distribuição de energia na cidade estabelecesse a infraestrutura elétrica para a carga e recarga dos ônibus não lograram sucesso. As empresas operadoras, depois de uma longa e complexa negociação, para viabilizar os investimentos necessários à aquisição dos veículos, estão recebendo os ônibus encomendados e nem iniciaram a instalação dos carregadores, para carga e recarga dos ônibus, e a adaptação necessária de suas garagens.

Embora não se tenha uma política nacional com vistas a orientar as ações a serem empreendidas e o papel dos vários agentes, públicos e privados, envolvidos no processo de descarbonização da frota nacional, o Governo Federal lançou, recentemente, um programa denominado PAC–Renovação da Frota, que contemplou 67 cidades brasileiras, com financiamento direto às prefeituras e governos estaduais, para a aquisição de 2.296 novos ônibus elétricos. Nesse programa, há cidades que poderão adquirir uma frota de 256 veículos e outras que deverão receber recursos financeiros para a compra de apenas 1 ou 2 ônibus elétricos.

Para o aprimoramento do referido programa de renovação da frota, com ônibus elétricos, e observando as experiências em curso – exitosas ou malsucedidas – a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU lançou um documento, intitulado Considerações sobre a Renovação e Modernização Tecnológica da Frota de Ônibus Urbano, dirigido às autoridades do Governo Federal, com propostas e sugestões para mitigar os desacertos e assegurar o sucesso dos projetos de substituição dos ônibus a diesel por veículos menos poluentes.

A primeira sugestão apresentada diz respeito à imprescindível necessidade da elaboração de um plano nacional de renovação e de descarbonização da frota de ônibus urbano e de caráter urbano. O propósito é garantir uma transição gradual da matriz energética, considerando a capacidade e o estágio de maturidade da indústria brasileira e levando em conta a utilização do motor diesel “Euro 6” e as novas tecnologias disponíveis ou em desenvolvimento, tais como: ônibus movido a biometano, ônibus utilizando o diesel verde (HVO) e ônibus elétrico com energia proveniente de células de hidrogênio, entre outros.

Vale ressaltar que a utilização do motor a diesel “Euro 5”, amplamente adotada nas cidades brasileiras, desde 2012, gerou redução de emissões locais bastante significativas. O inventário anual das emissões na Região Metropolitana do Rio de Janeiro revelou diminuições de 89,3% de material particulado (MP), 80,5% de monóxido de carbono (CO), 83,1% de óxido nitroso (N2O) e 90,5% de hidrocarbonetos (CxHy), no período compreendido entre 2011 e 2023.

Por outro lado, é preciso, concomitantemente, ampliar as possibilidades de acesso das empresas operadoras às linhas de crédito dos agentes financeiros, em especial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e da Caixa Econômica Federal – CEF. É preciso considerar, também, a possibilidade explicita de investimentos na aquisição de frota, compartilhados entre o poder público, responsável pela gestão dos serviços, e a empresa operadora, encarregada da prestação dos serviços de transporte público coletivo.

Além de contar com a participação do investimento privado, esse modelo permite a manutenção das frotas sob a propriedade das empresas operadoras, preservando as experiências e as vantagens na simplificação do processo de compra dos veículos; na garantia de manutenção adequada da frota, durante a sua vida útil; nos ajustes contratuais, em caso da necessidade de troca das baterias; e na facilitação da venda das sucatas, ao final da vida útil dos veículos.

Para a operação de uma rede de transporte, com frota superior a dez ônibus elétricos, é imperativa a elaboração de um Plano Operacional, com a definição da tipologia e porte dos veículos, identificação dos corredores ou das linhas, estimativa da quilometragem diária, determinação da autonomia dos ônibus, localização dos pontos de recarga de baterias e especificação dos modelos de carregadores de baterias.

É de suma importância a avaliação da disponibilidade do fornecimento de energia elétrica, inclusive em alta tensão, quando necessário, nos locais de carga e recarga definidos no Plano Operacional. É preciso assegurar o compromisso da concessionária de distribuição de energia em assumir a responsabilidade pelo fornecimento da quantidade de energia demandada, nos prazos ajustados e de acordo com os investimentos previstos. O custo de adaptação da infraestrutura elétrica, para a carga e recarga das baterias, pode chegar a 20% do custo total do projeto, dependendo do tamanho da frota.

No que se refere aos veículos, propriamente ditos, é preciso definir é preciso definir a responsabilidade pelo descarte das baterias, quando substituídas no decorrer da vida útil do ônibus, garantindo, pelos fabricantes, da disponibilidade de peças de reposição, ao longo da vida útil dos veículos e dos equipamentos de recarga das baterias. É preciso considerar, também, o fornecimento de assistência técnica adequada e compatível com as exigências da utilização da nova tecnologia.

Não menos importante é buscar soluções para os investimentos simultâneos na infraestrutura viária, principalmente, para a priorização do transporte público coletivo. Esses recursos são fundamentais quando se planeja a aquisição de frotas de ônibus elétricos, em função do alto valor agregado desses veículos, o que exige infraestrutura adequada para melhorar o desempenho e a produtividade dos sistemas de transportes eletrificados.

A mudança do perfil tecnológico da frota nacional de ônibus urbano ou de caráter urbano, nos médio e longo prazos, terá mais ou menos sucesso, dependendo do nível do planejamento adotado, para orientar as decisões inerentes ao desenvolvimento de cada projeto. Estabelecer um sistema de ônibus à tração elétrica é muito mais complexo do que adquirir uma frota de ônibus diesel e colocá-la em operação.   

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