Francisco Christovam
O artigo 175 da Constituição Federal estabelece que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
O contrato de concessão ou de permissão, instrumento jurídico imprescindível para estabelecer as regras da relação entre o poder concedente e a empresa privada, responsável pela assunção da gestão e da execução dos serviços públicos delegados, deve se submeter aos ditames da legislação aplicável, em especial da Lei Federal Nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, mais conhecida por Lei das Concessões.
Já a Lei Federal Nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, instituiu uma forma de concessão especial, por meio de parceria público-privada (PPP), nas modalidades patrocinada ou administrativa, cujo objetivo é a contratação de serviços – com ou sem obras – a serem fornecidos pelo agente privado, com remuneração apenas pelo governo (concessão administrativa) ou em uma combinação de recursos públicos e tarifas cobradas dos cidadãos que usam o serviço (concessão patrocinada).
O artigo 23 da mencionada Lei das Concessões reza que esses contratos devem conter cláusulas essenciais relativas ao objeto, área e prazo da concessão; ao modo, forma e condições da prestação dos serviços; aos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade do serviço; ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas. Trata, ainda, dos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária; dos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço; da forma de fiscalização das instalações e dos equipamentos, bem como dos métodos e práticas de execução do serviço, entre outras.
Desde a época da primeira república (1889-1930), quando os primeiros contratos de concessão foram assinados, principalmente para a construção de ferrovias e fornecimento de serviços públicos de abastecimento de água, gás, eletricidade e transportes, o objeto contratual deve ser preciso e considerar um eventual ganho de escala na prestação dos serviços de utilidade pública. Os prazos contratuais, por sua vez, são estabelecidos em função do tempo necessário para remunerar e amortizar os investimentos realizados pelo concessionário.
Não se pode deixar de considerar as peculiaridades do processo licitatório e da legislação que a fundamenta, notadamente, quanto ao objeto a ser licitado ou, no caso, concedido. Isso porque, a indivisibilidade do objeto da contratação, quando se trata de serviços de transporte coletivo, deve ser cuidadosamente avaliada, considerando os termos da nova Lei de Licitações e Contratos (Lei Federal Nº 14.133/2021). Quando a Administração Pública defini o objeto do futuro contrato de concessão ou de permissão, deve ter em mente o disposto no inciso I, do artigo 11, onde consta como um dos seus objetivos “assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto”, sem deixar de considerar os aspectos gerais da Lei de Concessões (Lei Federal Nº 8.987/1997).
De fato, a definição precisa do objeto a ser contratado, de maneira a refletir o interesse público e a real necessidade da Administração, é elemento indispensável e essencial para o sucesso da futura contratação, cuja doutrina é soberana nesse sentido. Segundo o entendimento do prof. Marçal Justen Filho, em “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, 15ª edição, 2012, Editora Dialética, pag. 590, “definir o objeto da licitação, para fins do art. 38, significa indicar o bem ou a utilidade a ser contratados. A indicação do objeto deverá ser sucinta. A regra visa evitar que a complexidade da descrição dificulte a compreensão de eventuais interessados. Essa descrição deverá permitir imediata apreensão do âmbito da licitação. Nesse campo, a atenção dos eventuais interessados poderia ser prejudicada tanto pela excessiva prolixidade quanto pela omissão dos tópicos essenciais.”
Mais recentemente, com as discussões sobre a substituição de veículos movidos a óleo diesel por veículos menos poluentes – movidos a eletricidade, biocombustíveis, gás metano ou hidrogênio – cujo preço de compra é bem superior ao do ônibus convencional, surgiu a possibilidade de um novo modelo de negócio e de um novo modelo de investimento para a aquisição da frota. De forma simplificada, a frota pode ser adquirida pelo poder público ou por um “financiador” e a empresa privada fica, somente, com a operação dos veículos, incluindo ou não os serviços de manutenção do material rodante.
Em paralelo, há discussões acaloradas sobre a transferência dos serviços de comercialização de créditos de transportes e de gestão de meios de pagamento a terceiros, atribuindo essas funções a uma empresa pública ou mesmo a uma empresa da iniciativa privada, desde que essa empresa não seja a empresa operadora da frota. Acrescente-se a essas discussões o debate sobre a propriedade das garagens, como fator que dificulta a renovação das empresas operadoras, por ocasião das licitações para a contratação dos serviços de transportes. Há quem defenda que as garagens devem ser propriedade do poder concedente, para facilitar a participação de novas empresas nos novos processos licitatórios.
Não há nenhuma razão para afirmar que os contratos de concessão devem permanecer exatamente como eram no início do século XIX; entretanto, não parece razoável dizer que estamos lidando com uma nova tendência ou mesmo com qualquer tipo de aprimoramento na contratação dos serviços de transportes. Se, de um lado, existem mais de 3 mil contratos de concessão ou permissão de serviços de transportes vigentes no País, cujo objeto considera a aquisição da frota, a gestão da bilhetagem ou da cobrança de tarifas, a disponibilização da garagens, bem como a operação e manutenção dos veículos, de outro, existem apenas algumas pouquíssimas tentativas de dividir o objeto contratual, com resultados ainda totalmente incertos e não comprovados.
É importante registrar que a divisão ou separação do objeto a ser contratado não deve ser confundida com fracionamento ou parcelamento do objeto contratual, termos com significado próprio na linguagem jurídica. Nesse sentido, o prof. Marçal Justen Filho, ao comentar o § 1º, do artigo 23, da Lei Federal Nº 8.666/93, em “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, Editora Revista dos Tribunais, 2014, pag. 365, diz: “As contratações devem ser programadas na sua integralidade, sendo indesejável a execução parcelada. Aliás, se o objeto do contrato for um conjunto integrado de bens e (ou) serviços – configurando-se um sistema – o fracionamento da contratação não será meramente indesejável, mas sim impossível…. Em princípio, todas as contratações fracionadas são executas simultaneamente. Na situação da programação parcelada, a Administração executa um certo objeto em etapas – o que significa uma dissociação temporal na execução do objeto.”
Mas, a divisão ou separação do objeto dos contratos de concessão não precisa ser, preliminarmente, rejeitada ou descartada; porém, a sua adoção, quando conveniente e devidamente justificada, deve estar baseada em estudos técnicos – jurídicos, econômicos, financeiros, operacionais etc. – muito bem elaborados e criteriosos e não em decisões políticas ou modismos.
O modelo de contratação dos serviços de transportes em São José dos Campos, com a realização de processos licitatórios separados para o fornecimento da frota, gestão da bilhetagem e operação das linhas, em discussão desde meados de 2021, não pode ser considerado uma experiência de sucesso. Mesmo utilizando diferentes formas de divisão do objeto contratual, em diferentes oportunidades, as licitações deram desertas ou foram frustradas, particularmente, porque as questões econômico-financeiras e operacionais adotadas não estavam compatíveis com as condições impostas pela realidade dos fatos. Atualmente, as empresas operadoras foram recontratadas, para que o sistema de transporte por ônibus voltasse a operar, normalmente.
Por outro lado, o modelo adotado na cidade do Rio de Janeiro, desde 2022, particularmente para os corredores do sistema BRT, ainda precisa de mais tempo, para uma avaliação técnica detalhada, para demonstrar que a divisão do objeto contratual, entre fornecimento de veículos, operação da frota pública, gestão da bilhetagem por terceiros e desapropriação de algumas garagens, de fato, vai trazer algum benefício para o Poder Público e, principalmente, para os usuários do sistema de transporte coletivo urbano de passageiros.
É preciso registrar que, quanto maior o número de contratos a serem administrados, mais onerosa e mais complexa fica a gestão desses instrumentos e, também, mais difícil fica a apuração de responsabilidades, no caso de quaisquer dificuldades ou impropriedades verificadas na prestação dos serviços, separadamente. Assim, a falha em um dos contratos contaminará a prestação do conjunto dos serviços contratados e, certamente, comprometerá a qualidade dos serviços prestados à população. Ademais, são bem poucas as cidades que possuem órgãos de gestão devidamente organizados e aparelhados para realizar, com eficiência e eficácia, a gestão de contratos de concessão, de permissão ou de prestação de serviços.
Se o objetivo fundamental das mudanças é criar dificuldades ou enfraquecer as atuais empresas operadoras, com a divisão do objeto dos contratos de concessão, é melhor analisar, em profundidade, as experiências em curso e rever essa “pseudotendência”. Trocar o certo pelo duvidoso não costuma ser uma boa prática, principalmente, quando se trata da prestação de um serviço público essencial, estratégico e tão importante para a população. Aqui, vale a pena chamar a atenção das autoridades e, também, dos operadores, para que não caiam num eventual “canto da sereia”.