A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos — NTU acaba de lançar um relatório técnico, intitulado “Tarifa Zero nas Cidades do Brasil”, com o objetivo de disponibilizar os dados, as informações e as análises referentes à adoção da tarifa zero no transporte público das cidades brasileiras. Esse relatório deverá ser atualizado e reeditado, regularmente, com a indicação do comportamento da demanda de passageiros e da oferta de lugares, do modelo de financiamento utilizado para a cobertura do custeio operacional e dos principais resultados observados na aplicação desse tipo de política pública.
Segundo o prof. Wojciech Keblowski, da Universidade Livre de Bruxelas, a tarifa zero existe em 69 cidades dos Estados Unidos e em 164 cidades da Europa. As primeiras discussões sobre a adoção da tarifa zero, no Brasil, aconteceram em São Paulo, no início da década de 1990; mas foi a cidade de Conchas, no interior do Estado de São Paulo, com uma população de cerca de 15 mil habitantes, que primeiro adotou essa modalidade, em 1992. Atualmente, existem 126 cidades brasileiras operando suas frotas de ônibus sem o pagamento de tarifas, sendo que 108 cidades (86%) praticam a tarifa zero de forma plena, ou seja, em todos os dias da semana e em todas as linhas de ônibus do município.
Na maioria dessas cidades, a tarifa zero nasce de uma decisão estritamente política, sem nenhum estudo técnico mais apurado, que possa antever as mudanças que sempre ocorrem quando se adota uma medida dessa natureza, com implicações de ordem econômica e social. Vale ressaltar que 91 cidades (72% do total) só adotaram essa política nos últimos quatro anos, depois do período da pandemia.
A maior parte dos casos de tarifa zero plena está concentrada em municípios pequenos, com população total inferior a 50 mil habitantes (63%). Na maioria das cidades desse porte, quando existe serviço organizado de transporte coletivo, a frota total é de, no máximo, 10 ônibus. Logicamente, nos municípios que pertencem a essa faixa populacional, os recursos necessários para prover a prestação do serviço de transporte público não são muito expressivos.
Nas cidades de pequeno porte, o poder público local, responsável pelo transporte coletivo da cidade, normalmente, consegue um espaço orçamentário para financiar a totalidade da prestação do serviço. Em algumas cidades, atividades econômicas não convencionais — exploração de petróleo, operações portuárias, siderurgia, processamento de alimentos, agronegócio, geração de energia, entre outros — possibilitam uma arrecadação extra de tributos, aumentando a capacidade de custeio dos serviços públicos.
As três maiores cidades que adotaram a tarifa zero são Caucaia, no Estado do Ceará, com uma população de cerca de 350 mil habitantes e com tarifa zero desde setembro de 2021; Luziânia, no Estado de Goiás, com 208 mil habitantes e com tarifa zero desde novembro de 2023; e Maricá, no Estado do Rio de Janeiro, com uma população de 197 mil habitantes, que começou a prática da tarifa zero em 2014, mas ampliou a medida para toda a cidade somente em 2021.
Alguns municípios têm utilizado a tarifa zero como uma oportunidade para subsidiar seus sistemas de transporte público, oferecendo aos passageiros a realização das viagens sem o correspondente pagamento pela oferta dos serviços. É importante destacar, no entanto, que tal prática gera uma situação totalmente nova para os deslocamentos urbanos, principalmente, no que se refere às mudanças de hábitos da população, com reflexos no aumento da demanda, bem como na necessidade de ajuste da oferta e, portanto, de acréscimo no número de veículos alocados à operação. Há que se considerar, também, como consequência, a inevitável elevação dos custos operacionais na prestação dos serviços de transporte, seja pela ampliação do número de viagens ou pela inserção de mais veículos na frota operacional.
A experiência tem demonstrado que, a partir da adoção da tarifa zero, há um significativo aumento da demanda de passageiros, que pode, em alguns casos, quadruplicar o número de pessoas que utilizam, diariamente, os serviços de transportes coletivos.
No caso das três cidades já mencionadas, Maricá teve um aumento de demanda de 144%, passando de 1,25 para 3,05 milhões de passageiros, respectivamente em fevereiro de 2021 e em setembro de 2023; e Luziânia teve um acréscimo de demanda de 202%, passando de 107,5 mil para 325 mil passageiros, por mês, em dois meses de operação da tarifa zero. Caucaia, por seu turno, teve um acréscimo de 371% no número de usuários, em dois anos, ou seja, passou de 510 mil para 2,4 milhões de passageiros, nos meses de agosto de 2021 e de setembro de 2023, respectivamente.
No que se refere à variação da frota operacional, Maricá teve um aumento de 160% na sua frota, passando de 52 ônibus, em janeiro de 2021, para 135 veículos, em setembro de 2023. Luziânia aumentou o número de veículos em operação em 83%, passando de 12 para 22 ônibus, em apenas um mês de operação da tarifa zero. Caucaia, por sua vez, teve um acréscimo de 46% na sua frota, em dois anos, ou seja, passou de 48 para 70 ônibus, no período de agosto de 2021 a setembro de 2023.
Todo acréscimo de oferta significa aumento imediato no custo operacional e, consequentemente, necessidade de maior aporte de recursos por parte do poder público local, na maioria dos casos, proveniente do orçamento municipal. Aliás, esse é o modelo de financiamento utilizado por quase todas as cidades que adotaram a tarifa zero. O aumento do custo total, decorrente do acréscimo da oferta, está relacionado com a abrangência do sistema de transporte público. Quanto maior a população de uma cidade, maior será a quantidade de passageiros atraída para o transporte coletivo e maior será a frota de ônibus necessária para realizar os deslocamentos diários.
Nas cidades em que o transporte público por ônibus é subsidiado de maneira integral, em somente cinco casos o custeio é realizado por meio de receitas oriundas de uma fonte específica. Nos municípios de São Caetano do Sul, Paranaguá, Formosa, Monte Mor e Santa Isabel, foram criados fundos municipais, para garantir as condições financeiras para o custeio e para os investimentos em controle, operação, fiscalização e planejamento dos programas de tarifa zero. Estes fundos têm como fonte de receita dotações orçamentárias, recursos do município e repasses estaduais ou federais, além de arrecadações provenientes de estacionamentos rotativos, multas de trânsito, exploração de espaços publicitários, dentre outras atividades. É importante destacar que, na maioria das cidades que adotou a tarifa zero, os recursos necessários para bancar essa prática comprometem, no máximo, 3% do orçamento anual do município.
Ainda sobre comprometimento de recursos orçamentários, em cidades com população superior a um milhão de habitantes e com uma frota de centenas de ônibus, o comprometimento do orçamento público pode chegar a 5% ou mais. A título de exemplo, vale citar que, na cidade de São Paulo, com uma população de cerca de 12,5 milhões de habitantes e uma frota operacional de quase 12 mil veículos, a eventual adoção da tarifa zero poderá comprometer de 15 a 20% do orçamento municipal, se não houver recursos provenientes de receitas extraordinárias ou com origem em novas fontes de custeio.
A adoção da tarifa zero é uma política pública, inclusiva e de caráter social, que garante o acesso universal a um serviço público essencial e estratégico, direito do cidadão e dever do Estado, importante instrumento de organização do espaço urbano e de racionalização do uso do sistema viário, principalmente, pelo aumento do uso do transporte coletivo. Além disso, é a expressão maior da utilização do subsídio pleno para o pagamento de todos os custos operacionais incorridos na operação dos ônibus.
Mas é importante destacar que a tarifa zero não garante a prestação de um serviço de qualidade à população. Quando o aumento da oferta de lugares não acompanha o inevitável crescimento da demanda, verifica-se uma superlotação dos veículos e uma perda significativa do nível do serviço. Na maioria dos casos, do ponto de vista econômico, indubitavelmente, os passageiros preferem pagar uma tarifa módica e dispor de serviços com acessibilidade, confiabilidade, regularidade, conforto, segurança e menor tempo de viagem, a usufruir da tarifa zero e contar com um serviço de baixa qualidade.
Num ano eleitoral, quando alguns candidatos ao cargo de prefeito não medem esforços para prometer o que, depois, não poderá ser cumprido, certamente, a tarifa zero não deve ser vista como uma solução para os problemas de transporte das cidades. E, também, não deve ser proposta por puro modismo, somente porque a cidade vizinha adotou ou pretende adotar a medida.
Acesso ao relatório: https://ntu.org.br/novo/upload/Publicacao/Pub638494860784707442.pdf
*Francisco Christovam é diretor-executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), vice-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (Fetpesp) e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional do Transporte (CNT) e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Engenharia.